Por que escrevemos?
 



Cronicas

Por que escrevemos?

Fernanda Santos


Escrevemos porque falta. Ou porque sobram pingos nos is, porque as vírgulas e os pontos finais abundam, e não faz sentido nenhum esse excesso de sentido. Essa ordem calculada da vida privada, essas dobras mortais que nos cobrem, defuntos em nossas camas até que pela manhã retornamos ao movimento desvairado que chamamos vida.

Porque a beleza que escorre de cada pequeno gesto diário nos engolfa, nos ultrapassa, e precisamos escrevê-la para não sucumbir.

Escrevemos porque queremos ver e não só olhar. Para degustar outra vez o bolo de aniversário ou rever o pôr do sol de ontem. Ou porque a ferida ainda dói, mesmo que não sangre mais.

Para respirar, para conseguir passar de aqui até lá, de agora até o próximo momento. Para significar o que nos foge ao alcance. Para não enlouquecer, ou para abraçar de vez o desvario, colocamos as palavras juntas em sentenças, páginas, tomos imensos que não nos salvam da destruição inevitável. Vomitamos as coisas todas que nos arranham a garganta e choramos a beleza das coisas espantosamente verdadeiras. Rimos do absurdo e do simples. Escrevemos para ser humanos.

As coisas ditas ou acontecidas só se dizem ou acontecem de fato quando escritas, partilhadas, recontadas. Ainda que apenas para si mesmo. Explicadas, ainda que sem explicação aparente. Encaixadas, limitadas, reduzidas a um tamanho comestível, ainda que levem uma vida inteira a serem digeridas. Escrever é uma forma de moldar as coisas para que caibam, fluam ou estanquem, para que elas se movam ou parem de acordo com o que for preciso. Porque precisamos moldar, porque tudo é afinal o resultado de nossa ficção, de nosso olhar poético ou cínico sobre elas. Porque escrever é inevitável.

Se não escrevemos, nada existe. As coisas continuam, claro, a seguir o seu estado de coisas; os carros, os copos, as bolas pulando nos parques. Mas a vida por trás das coisas, essa morre; é a escrita que lhes dá alma, como se as palavras injetassem uma substância translúcida e mágica nas coisas e lhes dessem vida. Falar do copo e do espanto que ele causa em mim é que elege o copo ao status de coisa viva e não só coisa que passa ao esquecimento.

Talvez seja tudo muito Clarice Lispector, mas me parece que escrevemos porque queremos pertencer. Queremos trazer junto, sentar à mesa todos partilhando os pães na gratuidade da partilha e não por existir uma razão. Ainda que escrever seja, talvez sobretudo, a busca de razão para tudo.

Há um impulso inquisitivo por trás de toda escrita, uma curiosidade primordial que nos faz mais próximos do mistério de existir. Acercamo-nos das respostas, sabendo que provavelmente jamais as alcançaremos de todo. Talvez seja exatamente esse mistério que alimente o fervor das palavras, pois não há de haver o ponto final. Não há limites para as histórias.

Somos livres enquanto escrevemos, enquanto há possíveis lugares em que podemos existir de outros jeitos, em que podemos rever o cotidiano e os séculos. Escrever estica as horas, derruba muros; dá vida a mundos inteiros e destrói nossa realidade mesquinha. Escrevemos porque é o único jeito de falar, o único jeito de realmente ver as galinhas e os ovos ou os tomates redondos com o devido espanto.


Fernanda Santos é natural de Recife, Pernambuco, mas virou cidadã do mundo em 2008. Escreve desde a adolescência, além de ter formação em design gráfico e teologia e ciências da religiã. É aluna do Curso Online de Formação de Escritores.

 

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